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(Solange Pereira Pinto). Portanto, ao utilizar algum deles cite a fonte. Obrigada!

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Vidas que não coagulam


(Por Solange, em 30.10.2008)




“Ser brasileiro é ser multicultural”, define o músico Ivan Lins em certo trecho do documentário “Três irmãos de sangue” (2006), com roteiro e direção de Ângela Patrícia Reiniger.

Lançado para homenagear o sociólogo Betinho (1935-1997), após dez anos de sua morte, o filme entrelaça a vida dele com as de seus irmãos Henfil (1944-1988) e Chico Mário (1948-1988). Todos vitimados pela AIDS a partir de transfusões de sangue.

Alternando cenas de arquivo pessoal, da mídia televisiva e de depoimentos emocionados, a película documenta de fato o que é “viver com a dor constante”. Não somente àquela das restrições e dos cuidados incumbidos aos hemofílicos, condição hereditária irreversível, mas também àquela outra nascida na alma (também condição hereditária irreversível?). Constante.

Um incômodo tal que moveu – de fato – esses mineiros (de Bocaiúva) filhos de dona Maria da Conceição a “sonhar até o infinito”. Menos que isso era pouco, sabiam. A mãe permanentemente indignada com a injustiça social foi o exemplo. Tirar da terra a força da ação, era a mensagem para o sentido de existir. A origem. O nascimento. “Transformar o lamento da vida em apoteose”. Fizeram.

“Respirar é um encontro com o ar”, metáfora para representar a necessidade vital de se buscar liberdade a cada enchida de pulmões. Voar para o essencial, uma vez que o sangue que lhes corria nas veias tinha urgência. Na fluidez constante, sem coagular. Sem tempo para a inércia tal como aqueles que têm sangue parado.

Qual a água que não se represa, eles não se continham neles mesmos. “Solidão e solidariedade”, sentimentos que escorriam constantemente nos veios de Henfil, pai do slogan “diretas já”. Combate à fome e à miséria, uma campanha pela vida, dueto perseguido por Betinho, indicado ao prêmio Nobel da paz. Denunciar a tortura e não calar jamais eram as claves de Chico de Mário e de seu violão em acorde.

Um ativista político, um artista cartunista, um músico independente que se complementavam como terra, água e ar. Viveriam assim até a última gota, ainda que de sangue. Ou utopia.

Castores que construíram diques que não usufruiriam. Chico Mário, Henfil e Betinho eram três irmãos de sangue. Intensos. Sanguíneos. Autoconfiantes. Incontidos. Viveram na urgência da vida que não coagula. Exilados do conformismo. Graúnas da abertura, dos novos tempos. Enfrentaram o medo de ter medo. A revolta dos palhaços, eles fizeram. Individualmente agiram pela coletividade. Na urgência de uma insatisfação constante não se coagularam como gente.

“Eram três irmãos embriagados de utopia, no sentido forte dessa palavra, não apenas como um sonho, mas como um projeto que os engajou numa militância permanente”, analisou Frei Betto no início do filme.

Participando de circuitos oficiais e alternativos, o premiado documentário – patrocinado pela Petrobrás – foi considerado, por votação popular, melhor filme no V Cinefest Petrobrás (Festival de Cinema Brasileiro de Nova Iorque 2007). Ganhou também o prêmio de melhor roteiro no Festival de Goiânia de 2006 e no Recine 2007, além da menção honrosa no Femina Fest 2008, tendo sido o único representante brasileiro na competição internacional de longas.

Oxalá! Vida longa para o longa que mostra vidas que não coagulam porque vivem na urgência do tempo de quem tem consciência e luta pela dignidade; de si e dos outros irmãos, ainda que não sejam de sangue...

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Saiba mais sobre o documentário em: http://www.3irmaosdesangue.com.br/

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

A morte que revela a morte

(22.10.2008)



Namoravam há três anos. Num tumulto de idas e vindas. Mais de dez, diziam. Ela ainda com 15 e ele já com 22. Os cabelos negros da menina contornavam-lhe a pele morena. Os lábios carnudos e a covinha no queixo emolduravam o sorriso estampado. O rapaz enlouquecia. Moravam no ABC, em Santo André. A última briga do casal, parecia definitiva. Um amigo a mais no orkut dela havia levantado sua ira. Não se conformava. Ela era dele.

Foi numa segunda-feira de outubro, 13, que a turminha se reuniu para fazer um trabalho de geografia da escola. Na casa de Eloá Cristina estava sua melhor amiga, Nayara, Vitor e mais um colega de classe. Batia um frio paulista e caia a garoa. Tempo bom pra um chocolate quente ou batida de morango, quem sabe.

A tarde começava. No segundo andar do conjunto habitacional da Rua dos Dominicanos, a moçada estudava. Até que Lindemberg Alves, sem ser convidado, chega com o coração em pedaços. Inconsolado. Indignado. Obstinado. Arma 32 no punho. Um saquinho de munição a tiracolo. Às 13h30min, Orgulho ferido. Macheza a pino. Esbraveja para moça: “isso não ficará assim”. Não suportava o fim do namoro. Estava uma pilha de nervos. Logo de chegada, estapeou os garotos com ciúme doente. Deu um tiro no modem e matou o PC.

A noite aproxima. Eloá não acreditava no que via. Melhor, lembrava de quantas vezes apanhara do namorado e do quanto ele era possessivo. Não agüentava mais viver assim. Não abriria mão do rompimento. Lindemberg ameaçava. O grupo estava rendido. Todos assustados. Os meninos passaram mal e foram libertados. Ela não. Seriam reféns do amor enlouquecido.

Os celulares tocavam. Os pais buscavam notícias. Os vizinhos queriam detalhes. A polícia foi chamada. Estava erguido o espetáculo. A periferia de Santo André era palco do noticiário. Pela primeira vez Lindemberg e Eloá na TV. Era show. Ao vivo. Pela janela do apartamento se movia o filme parecido com seqüestro. O anjo bom e o anjo mau assopravam o ouvido do rapaz. Nayara testemunhava. O tempo passava. Outro dia nasce.

Um tiro descortina rua afora. Havia mirado o policial. Ele erra. E sorri. E se acha herói em cadeia nacional. 28 horas. O moço vira plantão do Jornal Nacional. Seu nome ganha a voz da Fátima Bernardes. Ele vibra. Enaltece sua importância. Ao mesmo tempo destempera. Oscila. Não tinha planos definidos. Não sabia o que fazer. Queria Eloá para sempre. Queria domá-la. 30 horas. Queria controlar. Queria não sentir. Queria se anestesiar. Abre a porta do apartamento e manda Nayara correr e fala “não olhe para trás”. 33 horas. Ela obedece num fôlego só.

40 horas. Sofrendo pede um beijo. Ela nega. Ele força. Ela rejeita. Ele bate. Três dias se completam. Ninguém cede. A multidão se avoluma perto do prédio para acompanhar o folhetim. Ávidas por mais uma cena, as filmadoras se projetam em direção ao terceiro andar. Voyeurs a postos. 44 horas. Registram apenas cimento e vultos esparsos do casal em negociação.

A família exilada à força tenta contato. Seu Aldo Pimentel, o pai da garota, quer voltar para casa. Pede ao ex-namorado da filha que recue. 50 horas. Não consegue. Lindemberg não negocia. 55 horas. Não quer nada em troca. Não abre mão. Profetiza: “se Eloá não é minha não será de mais ninguém”.

60 horas. Em alerta, os policiais barganham. 68 horas. Nayara volta para a casa da amiga. Prefere o cativeiro a ficar longe de Eloá sem ter notícias. Acalenta. Os jornais vendem em disparada. A história se avoluma nos salões. Nos parques. Nos escritórios. Nos restaurantes. No metrô. Na grande São Paulo. No Brasil inteiro. O enredo toma ares de horário nobre. Trama de Janete Clair. 72 horas.

Sob a mira do revolver elas não podiam dormir. 80 horas. Amarradas com camisetas e fita adesiva velavam o sono do rapaz amador. Já era quinta-feira. O cansaço abatia todos. 85 horas. Menos a paixão insensata de Lindemberg. Essa esquentava. 90 horas. A mensagem de Felipe para Eloá o havia tirado ainda mais da razão. Era insuportável pensar nela com outro. Isso não. Jamais!

Um estampido. Outro. Mais um. 100 horas. A porta cai sobre a barricada. Os homens invadem a saleta. O paraibano de Patos sonhava com o casamento. Não bebia. Não fumava. Era trabalhador. A família enaltecia. Como podia agora estar medido com isso? Essa coisa de amor armado...

A face de Nayara avermelhava em sangue. A cabeça de Eloá pendia sobre o sofá em tons mostarda. A almofada escorava-lhe o queixo. O colchão sobre o tapete central embolava os lençóis de noites mal vividas. Os restos de comida registravam 100 horas de solidão. O retrato da saída era do Lindemberg trancado em si mesmo.

A mãe chora. A outra chora. A irmã dele sofre. A mãe chora. O outro chora. O irmão dela sofre. A televisão foca. A platéia arregala. Uns choram. O pai passa mal. O Samu salva. Lá vai seu Aldo para o hospital. Inconsolado. Pobre homem. Vítima de uma bala fincada no cérebro da filha. Ele não agüenta. A mãe se ergue forte e mostra a cara na TV. Ele não.

Mas o inesperado acontece. Seu Aldo, pai da menina morta por ciúmes, vira manchete nacional. Seu nome verdadeiro Everaldo Pereira dos Santos. Procurado pela polícia. Ficha corrida longa. Fugitivo de Maceió. Homem da gangue fardada. Pistoleiro. Assassino do delegado. Não vai ao velório. Não vai ao enterro.


Lindemberg ouve a notícia na prisão. Lembra de João de Santo Cristo. Não acreditava na história que ele via na TV. E o repórter anuncia: “Nayara pede aos médicos a visita de Pato, o Alexandre”. O jogador do Milan se comove e manda a camisa autografada.


O orkut estoura de scraps. A filha de seu Ronaldo pede uma bicicleta ao avô de Natal. Fernanda manda um conto para Marçal. Solange começa a escrever um conto com o título “a morte que revela a morte”. 172 horas. Ele nega. O assassinato, ele nega. A morte dela, a ele revela. Lindemberg chora. A mãe vela. Procura-se...

terça-feira, 21 de outubro de 2008

A princesa do lado de lá



Coqueiro mirrado. Ao vento. Menina encabulada. Ao relengo. Descia o pó de guaraná com açaí pela goela da classe média. Ela media. Leonardo enfiava gol na marca. Ela sorria. Vanice contava novamente as moedas e as balas de goma. Assuntava a escuridão que baixava pela linha ao longe. Pensava na volta sacolejada e arenosa. Arrepiava. O bolo de milho revirava. Sabia. Passava das quatro. A caixa meia boca. Os pés não socorreriam metade acima. Bocejava as costelas magras. A noite vinha e ainda a aula de matemática. O pensamento afundou. A loirinha apressada lhe jogou água. Arregalou-se novamente. Caminhou um poste a mais. Abanou um sorriso fugido. Mariana comprou três chicletes. Deixou o troco. "Pamonhaaa quentinhaaaaaaa". Gritava alguém. Espirrava o tédio. João Maluco dizia que gritar fazia bem à alma. Ela se envergonhava. Era de verbo curto. Gastava mais palavras quando orava. Ainda assim, pra dentro. Havia completado catorze dois dias antes. Ganhou um terço de prata. Contava a reza pra sair daquela vida. Era ali na princesinha avistada do morro que se perdia de medo. Do lado de lá, tinha rajada. Até assombração. Mas a menina calada, sabia. Na filha de Zé Girino não se mexe. Não bolina, nem desrespeita não. Faltavam seis postes até a parada de ônibus. "Sanduícheeeee naturaaaaal". Atum. Salada. Salpicão. Mirou o letreiro. Era Engenho de Dentro. O gringo chamou e meteu a nota. A canela titubeou. Num solavanco caiu de beiço. O tiro passou fino. As jujubas se espalharam. Afastou o cacho do olho esquerdo. Avistou o inglês. Lembrou-se de quem era. Estava grávida.



(DF, 21.10.2008)

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

O pinhel



Eu que nunca aprendi a escrever...
mas aprendi a brincar de...
não soube até hoje se...


Brasília, 2 de outubro de 2008, mês das crianças
Por Solange Pereira Pinto




Quando eu era criança minha mãe brincava comigo de uma brincadeira que a mãe dela brincava com sua avó. Uma diversão passada pelas gerações, o "pinhel".


Uma brincadeira "brincada" com as mãos. Uma pilha de mãos dançando ao ar até desabar em cócegas na barriga de alguém. Normalmente, desempilhava na minha ou na do meu irmão menor.

Eu, com meus dedinhos pequeninos, beslicava a pele da mão de minha mãe em formato de concha, e o meu irmão beliscava a minha e íamos nos revezando em mãos até não sobrar qualquer uma solta. Depois das mãos apoiadas umas sobre as outras, fazíamos um movimento vertical, suspendendo e abaixando, repetindo a cada deslocamento a palavra "pinhel".


Assim se dava o "pinhel-pinhel-pinhel-pinhel-brululululu". O brululululuuuuu acontecia no desabamento das mãos até as costelas mais próximas. Difícil até de descrever essa lúdica brincadeira de toques e intimidade.


O tempo passou e o pinhel ficou. Pra trás. Ficou, também, na mente, na pele, no gesto, no gosto, na saudade... Na memória do corpo e da infância.


Há alguns meses, três décadas depois, eu relembrei dele e resolvi brincar com minha filhota de sete anos. Nem é preciso dizer o quanto ela adorou a brincadeira cosquenta.

No vaivém das mãozinhas e das pupilas, ela ri até desabar os dentes de alegria e a barriga a tremer de satisfação "pinhelenta".


Os olhinhos, fixados nos outros e procurando por vezes os dedos em pinça, podem se remexer em gargalhadas no segundo seguinte a uma piscadela. E a gente se diverte. E a gente se repete em pinhels (?).

No mesmo instante em que as mãos se desmancham em cutucadas risadas elas correm para se amontoar novamente e, assim, recomeçar a dança, que tem por graça o inesperado da fuga da mão adulta a procurar um lugar cheio de cosquinhas na criança.


Pinhel é assim: movimento e alegria. Quase uma cor que salta da barriga.


Só que...

O tempo gira. O cata-vento roda. A aurora surge e a gente não sabe de nada!


Nadica!


Até que...


A dúvida faz coceira dentro da cabeça e a gente fica doido de querer saber.


Foi assim...


Eu nunca tinha precisado escrever (como outras tantas devem ter) a palavra "pinhel" ou seria "pinheu"? Quem sabe "pinhéu"? Apenas passei anos e anos da minha vida "falando" pinhel. Sentindo o "pinhéu". Gargalhando com o "pinheu". E tudo bem. E eu ria. E não caiu no vestibular.
Como o que se vive não cai no vestibular e nem entra no currículo, é bobagem decerto. Ninguém precisou ensinar. Nem ninguém precisou saber escrever, afinal.

Até que, revirando um site de brinquedos de papel (sou uma eterna criança), dou de cara com uma palavra escrita que me faz relembrar a infância: "pin wheel" (traduzindo toscamente "pino roda"). Eu pensei: "céus é o meu pinhel!" Correndo, lá fui catar meu riso alto! Mas não era o meu pinhel! Ops, pin wheel (falado"pin-huiu").

A ignorância remexeu os dedos no teclado e fui ao dicionário inglês-português e achei o coladinho "pinwheel" (cata-vento e similares).

O vento não parou e a curiosidade aumentou. Como se escreve o MEU pinhel?

Pedi clemência ao Houaiss dei de cara com o regionalismo "douro", que é o mesmo que "caruma", que significa folha, quantidade, que por fim é igual a folha de pinheiro.


Uau! Pinhel vem de pinheiro! Que lembra o Natal (estrangeiro, mas tudo bem)! Que me lembra luzes saltitantes... que por fim me trazem presentes! Fiquei extasiada feito criança que junta sílabas e lê a palavra. Le-gal! Pi-nhel!


Ainda não era o pinhel da gargalhada! Continuei procurando um pouco mais, na santa internet e seus hipertextos, achei a Pinhel (foto) de Portugal. Agora com a mesma pronúncia do meu pinhel. Mais próxima e com castelo para contar histórias. Cujo nome "Pinhel", é claro, deriva da grande quantidade de pinheiros existentes por lá.


E nada de encontrar o pinhel de mãos!


Sem verbete para o meu, de pinhéu a pin wheel, pinwheel, até Pinhel rodei como um pinhel. Cata-ventei até subir às torres do castelo de mãos e achei o que estava escondido de mim: o renascimento da palavra carregada de significados emotivos, sensoriais, afetivos, melódicos.


O pinhel falado ganhou sua roupa de letrinhas. Ganhou primos. Ganhou ascendentes. Ganhou, agora, no meu papel a forma de PINHEL. Assim maiúsculo. Gritando sua importância.


Agora sim, ele existe na forma escrita e eu o batizei em grafema. O pinhel falado... que eu não aprendi a escrever... mas aprendi a brincar... o pinhel bolinado... que não sei de onde vem... o pinhel dos contos de réis e não de reis... o pinhel popular... da tradição oral... o pinhel feito de pinheiro de mãos que balançam ao vento até o topo chegar no chão para cutucar as costelas de quem ainda não aprendeu a ler e já sabe brincar... de falar... "pinhel-pinhel-pinhel-pinhel-brululululu".


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Origem das fotos usadas nesta postagem: 1) blog.craftzine.com
2) visualparadox.com 3) bp0.blogger.com 4) ruimsc.blogspot.com 5) olhares.aeiou.pt

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