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(Solange Pereira Pinto). Portanto, ao utilizar algum deles cite a fonte. Obrigada!

sexta-feira, 30 de março de 2018

Uma carta a Patti Smith ou uma resenha-autobiográfica para uma biografia


Brasília-DF, 29 de março de 2018

Querida Patti,

Posso lhe chamar assim? Desde que fui apresentada a você, não consigo esquecer a determinação capricorniana configurando seu trajeto. Apesar de a sua idade ser próxima a da minha mãe, três anos a menos, eu jamais poderia ser sua filha; pois, desculpe-me o atrevimento, eu poderia ser você.

Aqui é outono de 2018, e conheci nesta semana o seu verão de 50 anos antes. Deixe-me explicar o meu assombro. Eu nasci quando você partiu para o abrigo mútuo que gestaria dois artistas em Nova Iorque. Fui parida em novembro de 1967, mesmo ano em que Robert Mapplethorpe comprou aquele singelo colar da Pérsia, feito de duas placas de metal esmaltado unidas por pesadas contas negras e prateadas, como um escapulário muito velho e exótico, o qual você adorava copiar quando trabalhava de caixa na livraria Brentano. Era assim mesmo?

Você me contou que esse colar foi a senha para, em seguida, você pedir a ele que lhe salvasse daquele escritor de ficção científica desconcertante. Lembro-me que Robert fingiu ser seu namorado e lhe pagou um egg cream, salvo engano, a bebida preferida dele (leite, água com gás e xarope de chocolate). Dali em diante, eu sei, pactuou-se uma existência amorosa e artística entre vocês. Fiquei encantada com tamanha cumplicidade e encontro tão anímico.

Patti, fiquei pensando quantas manhãs famintas e noites criativas são necessárias para transformar alguém em artista! A menina má tentando ser boa e o bom menino tentando ser mau. Misturados em luz e treva, em claro e sombra. O diálogo visual e as memórias fundidas de épocas fodidas. Um encontro para se encontrarem. Histórias de trocadilhos e descobertas nada fajutas marcaram Bob e você. Lindo isso!

Outro dia, minha filha disse que a gente realiza na juventude-adulta a aura daquilo que se admirou na infância e ainda não se podia realizar por pura falta de idade e recursos. Eu era criança quando você experimentava ser você. E ele, ele. A década de 70 foi a da minha infância em um país sob a ditadura e repressão. Do outro lado do equador, estava você vivendo intensamente a cultura de uma época pop.

A geração beatnik, a busca da liberdade, quebra de tabus, o festival de música Woodstock, o movimento Hippie, o estilo de vestir com a filosofia de paz e amor, as calças boca de sino, estamparia colorida e batas leves. Sei, também, que na mesma época, a moda se tornou unissex pela primeira vez com uma estética andrógina e individual. Enfim, a ruptura de gêneros e, pasme Patti, somente agora, no Brasil, se insere nas mídias e cabeças. Quanta demora, céus!

Devo lhe dizer que achei criativo o estilo transgressor de calças rasgadas, rebites, alfinetes, jaquetas de couro e cabelos com cortes e cores que marcou o movimento punk, do qual você foi grande influência, além, é claro, do seu estilo particular de música fundindo rock, punk e poesia recitada. Genial, Patti! Não canso de escutar seu LP Horses, já no youtube. E, a música Glória, em sua voz rouca guitarrada é estupenda!

Escrevendo aqui-agora, percebo que esse ar dos anos setenta conduziu meu jeito de enxergar como minha vida deveria ser construída. Roupas soltas e ideias livres, nada de aprisionamento. Entende, agora, por que eu precisava tanto falar com você hoje? Uma necessidade sincrônica de compartilhar como eu me identifiquei com a fusão simbiótica de Robert e você, registrada em primeira pessoa nas quase 300 páginas de “Só garotos”.

Percorri lado a lado, as pinturas e os desenhos do subconsciente, as mandalas, o dadaísmo e o surrealismo, os aniversários presenteados com livros, os desenhos emparedados, os poemas assoalhando o chão, a lealdade eternizada entre duas pessoas, o sofrimento de ter que abraçar a morte após parir a vida entre outros momentos tão fortes que você narrou. Vi-me na clareza da sua própria imperfeição traduzida em um broche de patins roubado. Até a Luluzinha em quadrinhos, lidas para Stephanie, esparramaram-se sobre minha cama durante anos. Sabe Patti, não quero me alongar demais, por isso vou resumir minhas interseções.

Dos olhos de Robert, sublinhei o meu gosto por rituais, altares, campo de estrelas azuis, a timidez e uma natureza meticulosamente escorpiana. As cores fora de lugar, as distorções de imagem, a alquimia da mistura, as assemblages, as instalações, a curiosidade, o experimento, o processo, o improviso, o jazz-visual.  Por que não a neve roxa, pele verde e sol de prata? As bijuterias tecidas de absurdos. O dilema da invisível lealdade familiar. O filho obediente, até na escolha da carreira que lhe foi exigida. A igual percepção de que ninguém veria o que ele havia visto; ninguém entenderia. Entendo o quanto ele estava acostumado a essa sensação sentida por toda a vida, embora na primeira parte agisse como se tivesse culpa, procurando aprovação do pai, professores e pares. Inseguro, não sobre seu desejo e objetivo, mas sem a certeza se era uma pessoa boa ou não; se era altruísta ou se era demoníaco. Era artista, nisso não havia dúvida. Disso, ele sabia. Eu inclusive.

Dos seus olhos, Patti, recortei de mim o seu interesse pelo budismo, o alívio que encontrou em Rimbaud e sua inteligência irreverente. Preciso confessar que eu sinto igual amor secreto por autores geniais. Compreendo o seu êxtase ao se deparar com as chaves para uma linguagem mística do tipo que se devora sem ainda ser capaz de decifrar. Amor aos versos, à linguagem, à memória. Ah, comungo da sua vontade de independência familiar e a mesma febre para construir arcanjos que livrem os dias dos horrores mundanos da vida proletária. Obrigada pela dica sobre fazer bicos e frilas para manter a sobrevivência com liberdade rumo ao castelo que se deseja construir. Tenho apostado nisso!

Como você, eu diria, já consegui roer certas cordas com a fé de que ninguém estava me esperando, mas tudo esperava por mim. Não sem antes encontrar um lugar seguro para dormir, algo para comer, ainda que revestida da mesma melancolia inexplicavelmente infinita que nos compõe. Economizar para investir em material de artes tem sido constante, assim como os momentos circundados de objetos simbólicos, cacarecos afetivos e disposição para empenhar energia quando o outro mais importante precisa de nós.

Não tive a “sorte” de respirar o mesmo ar de músicos, poetas, escritores, pintores e outros seres incorporados de arte, como vocês fizeram na época do hotel Chelsea em NY. Aqui na minha cidade, Brasília, os monumentos históricos recheiam uma cidade que vive em torno da política e do governo. Arte aqui é arquitetura, assunto para outra ocasião, ok? Preciso finalizar esta prosa.

Patti, quero registrar o quanto admirei sua andança até o encontro com Saint, seu guia, um cherokee negro com um pé na sarjeta e outro na Via Láctea. Vou revelar um arrependimento: não tive a sua coragem de romper estradas, vestida de macacão de algodão e uma mala de xadrez amarelo e vermelho na mão. Sinceramente, queria ter conseguido sair da minha cidade original e descortinar lugares mais distantes.

Lamento por seus dias de exaustão, fome e longas buscas pela sobrevivência desfilando estropiada a 5ª Avenida por semanas, por ter que dormir na grama, metros e cemitérios, por comer pão árabe com talos de aipo. Lamento por Robert e Sam.

Guardo com carinho a imagem do toco de giz vermelho que desenhou calçadas e foi um amuleto para você continuar sua busca pela arte. Robert se consagrou na fotografia e ficou rico como sonhava. Você, Patti, se tornou uma cantora influente, poeta e escritora premiada. Agradeço-lhe por ter me contado, por deliciosas horas, uma parte da sua história. É inspiradora. Sou feliz por você existir.

Com carinho,

Solange Perpin

Eu, acompanhada

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