Brasília-DF, 29 de março de 2018
Querida
Patti,
Posso
lhe chamar assim? Desde que fui apresentada a você, não consigo esquecer a determinação
capricorniana configurando seu trajeto. Apesar de a sua idade ser próxima a da
minha mãe, três anos a menos, eu jamais poderia ser sua filha; pois,
desculpe-me o atrevimento, eu poderia ser você.
Aqui
é outono de 2018, e conheci nesta semana o seu verão de 50 anos antes. Deixe-me
explicar o meu assombro. Eu nasci quando você partiu para o abrigo mútuo que
gestaria dois artistas em Nova Iorque. Fui parida em novembro de 1967, mesmo
ano em que Robert Mapplethorpe comprou aquele singelo colar da Pérsia, feito de
duas placas de metal esmaltado unidas por pesadas contas negras e prateadas,
como um escapulário muito velho e exótico, o qual você adorava copiar quando
trabalhava de caixa na livraria Brentano. Era assim mesmo?
Você
me contou que esse colar foi a senha para, em seguida, você pedir a ele que lhe
salvasse daquele escritor de ficção científica desconcertante. Lembro-me que Robert
fingiu ser seu namorado e lhe pagou um egg
cream, salvo engano, a bebida preferida dele (leite, água com gás e xarope
de chocolate). Dali em diante, eu sei, pactuou-se uma existência amorosa e
artística entre vocês. Fiquei encantada com tamanha cumplicidade e encontro tão
anímico.
Patti,
fiquei pensando quantas manhãs famintas e noites criativas são necessárias para
transformar alguém em artista! A menina má tentando ser boa e o bom menino
tentando ser mau. Misturados em luz e treva, em claro e sombra. O diálogo
visual e as memórias fundidas de épocas fodidas. Um encontro para se
encontrarem. Histórias de trocadilhos e descobertas nada fajutas marcaram Bob e
você. Lindo isso!
Outro
dia, minha filha disse que a gente realiza na juventude-adulta a aura daquilo
que se admirou na infância e ainda não se podia realizar por pura falta de
idade e recursos. Eu era criança quando você experimentava ser você. E ele, ele.
A década de 70 foi a da minha infância em um país sob a ditadura e repressão. Do
outro lado do equador, estava você vivendo intensamente a cultura de uma época
pop.
A
geração beatnik, a busca da liberdade, quebra de tabus, o festival de música
Woodstock, o movimento Hippie, o estilo de vestir com a filosofia de paz e
amor, as calças boca de sino, estamparia colorida e batas leves. Sei, também, que
na mesma época, a moda se tornou unissex pela primeira vez com uma estética
andrógina e individual. Enfim, a ruptura de gêneros e, pasme Patti, somente
agora, no Brasil, se insere nas mídias e cabeças. Quanta demora, céus!
Devo lhe dizer que achei criativo o estilo
transgressor de calças rasgadas, rebites, alfinetes, jaquetas de couro e
cabelos com cortes e cores que marcou o movimento punk, do qual você foi grande
influência, além, é claro, do seu estilo particular de música fundindo rock,
punk e poesia recitada. Genial, Patti! Não canso de escutar seu LP Horses, já no youtube. E, a música Glória, em sua voz rouca guitarrada é
estupenda!
Escrevendo aqui-agora, percebo que esse ar dos anos
setenta conduziu meu jeito de enxergar como minha vida deveria ser construída. Roupas
soltas e ideias livres, nada de aprisionamento. Entende, agora, por que eu
precisava tanto falar com você hoje? Uma necessidade sincrônica de compartilhar
como eu me identifiquei com a fusão simbiótica de Robert e você, registrada em
primeira pessoa nas quase 300 páginas de “Só garotos”.
Percorri lado a lado, as pinturas e os desenhos do
subconsciente, as mandalas, o dadaísmo e o surrealismo, os aniversários presenteados com livros, os desenhos
emparedados, os poemas assoalhando o chão, a lealdade eternizada entre duas
pessoas, o sofrimento de ter que abraçar a morte após parir a vida entre outros
momentos tão fortes que você narrou. Vi-me na clareza da sua própria imperfeição
traduzida em um broche de patins roubado. Até a Luluzinha em quadrinhos, lidas
para Stephanie, esparramaram-se sobre minha cama durante anos. Sabe Patti, não
quero me alongar demais, por isso vou resumir minhas interseções.
Dos
olhos de Robert, sublinhei o meu gosto por rituais, altares, campo de estrelas
azuis, a timidez e uma natureza meticulosamente escorpiana. As cores fora de
lugar, as distorções de imagem, a alquimia da mistura, as assemblages, as instalações, a curiosidade, o experimento, o
processo, o improviso, o jazz-visual. Por
que não a neve roxa, pele verde e sol de prata? As bijuterias tecidas de
absurdos. O dilema da invisível lealdade familiar. O filho obediente, até na
escolha da carreira que lhe foi exigida. A igual percepção de que ninguém veria
o que ele havia visto; ninguém entenderia. Entendo o quanto ele estava
acostumado a essa sensação sentida por toda a vida, embora na primeira parte
agisse como se tivesse culpa, procurando aprovação do pai, professores e pares.
Inseguro, não sobre seu desejo e objetivo, mas sem a certeza se era uma pessoa
boa ou não; se era altruísta ou se era demoníaco. Era artista, nisso não havia
dúvida. Disso, ele sabia. Eu inclusive.
Dos
seus olhos, Patti, recortei de mim o seu interesse pelo budismo, o alívio que
encontrou em Rimbaud e sua inteligência irreverente. Preciso confessar que eu
sinto igual amor secreto por autores geniais. Compreendo o seu êxtase ao se
deparar com as chaves para uma linguagem mística do tipo que se devora sem
ainda ser capaz de decifrar. Amor aos versos, à linguagem, à memória. Ah, comungo
da sua vontade de independência familiar e a mesma febre para construir
arcanjos que livrem os dias dos horrores mundanos da vida proletária. Obrigada pela
dica sobre fazer bicos e frilas para manter a sobrevivência com liberdade rumo
ao castelo que se deseja construir. Tenho apostado nisso!
Como
você, eu diria, já consegui roer certas cordas com a fé de que ninguém estava
me esperando, mas tudo esperava por mim. Não sem antes encontrar um lugar
seguro para dormir, algo para comer, ainda que revestida da mesma melancolia
inexplicavelmente infinita que nos compõe. Economizar para investir em material
de artes tem sido constante, assim como os momentos circundados de objetos
simbólicos, cacarecos afetivos e disposição para empenhar energia quando o
outro mais importante precisa de nós.
Não
tive a “sorte” de respirar o mesmo ar de músicos, poetas, escritores, pintores
e outros seres incorporados de arte, como vocês fizeram na época do hotel
Chelsea em NY. Aqui na minha cidade, Brasília, os monumentos históricos
recheiam uma cidade que vive em torno da política e do governo. Arte aqui é
arquitetura, assunto para outra ocasião, ok? Preciso finalizar esta prosa.
Patti,
quero registrar o quanto admirei sua andança até o encontro com Saint, seu guia,
um cherokee negro com um pé na sarjeta e outro na Via Láctea. Vou revelar um
arrependimento: não tive a sua coragem de romper estradas, vestida de macacão
de algodão e uma mala de xadrez amarelo e vermelho na mão. Sinceramente, queria
ter conseguido sair da minha cidade original e descortinar lugares mais
distantes.
Lamento
por seus dias de exaustão, fome e longas buscas pela sobrevivência desfilando
estropiada a 5ª Avenida por semanas, por ter que dormir na grama, metros e
cemitérios, por comer pão árabe com talos de aipo. Lamento por Robert e Sam.
Guardo
com carinho a imagem do toco de giz vermelho que desenhou calçadas e foi um
amuleto para você continuar sua busca pela arte. Robert se consagrou na
fotografia e ficou rico como sonhava. Você, Patti, se tornou uma cantora influente,
poeta e escritora premiada. Agradeço-lhe por ter me contado, por deliciosas
horas, uma parte da sua história. É inspiradora. Sou feliz por você existir.
Com carinho,
Solange Perpin