Foi no dia 11 de novembro. Tia Carmelita não deixava espaços vazios. Como um polvo de mil braços, escrevia muitas histórias. O casarão da Rua 1 de Março tem sua fachada simples. Durante 93 anos minha tia cuidou de deixá-lo vivo. Coleções de livros, obras de arte, manuscritos inéditos. Guardava em cada cômodo os textos vivos de uma vida intensa e bem experimentada. Os móveis modernos misturavam-se aos adereços antigos. Objetos de viagem disputando lugar com outras quinquilharias da cidade. Caixinhas, caixonas, baús, discos, estatuetas, vídeos, linhas, agulhas de tricô, miçangas, máscaras, lenços coloridos e outras tranqueiras. Nossa, passear entre seus guardados sempre foi aventurar-se num mundo quase mágico. Não havia de se imaginar a próxima descoberta. Não se sabia se o teto nos comprimiria ou se nos tornaríamos gigantes. Tia Carmelita sabia onde encontrar desejos e transformar minutos entediados. Cabeça ágil, dedos voláteis. A organização de tudo tinha lá uma lógica, digamos, da perspectiva de um pintor barroco. Ela sabia onde estava cada nuance, cada detalhe, onde estava o ponto de fuga. Talvez por instinto ou pela própria natureza tudo se encaixava em algum lugar. Para muitos era uma desordem pura e detalhes demais. Não para ela e seu casarão. Naquela tarde de domingo, quando soube da herança, meu coração bateu em disparada ao futuro. Como tomaria conta da vivacidade impressa naquele casarão continental? Lá estavam os seis quartos com banheiros, a sala de estar, a sala de jantar, a cozinha, a área de serviço e suas dependências. Num afã, de quem pega um novo brinquedo para montar, comecei trocar de lugar as coisas. Sempre imaginava o que faria se aquele lugar fosse meu. Era lúdico e desafiador. Quando a bagunça parecia geral, depois de muito mexer daqui e dali, refleti porque não deixava tudo como estava antes. Que necessidade era essa de mexer, de mudar tudo? A casa tinha o jeito de tia Carmelita e agora havia que ter o meu jeito... Estranho isso... Cada armário que abria, cada buraco de esquecimento que encontrava, me arremessava contra mim mesma. Apunhalava minha consciência. Expunha minha vaidade. Engrandecia meu poder. O legado era agora meu. Percebia que alguns apetrechos se ressentiam na mudança. Uns se quebraram. Eu estava exausta de olhar para o mundo que estava pela frente a arrumar. Aqueles objetos conviveram por anos junto aos seus pares. Numa ordem praticamente natural. Por hora, o destino deles pertencia a mim. Sentiriam a falta de tia Carmelita? Melhor não pensar nisso. Estavam em minhas mãos. Sentada em frente à grande arca, com olhos empoeirados e pensamento saudoso, entendi que precisava ir ao poucos. Por eles, por mim e por tia Carmelita. Saí do casarão e ele me acompanhou até o dia clarear.
Aviso importante:
A visualização deste blog fica melhor em computador. Todos os textos (e esboços) postados neste blog são de autoria de Solange Perpin
(Solange Pereira Pinto). Portanto, ao utilizar algum deles cite a fonte. Obrigada!
sábado, 22 de abril de 2006
Aos poucos
Foi no dia 11 de novembro. Tia Carmelita não deixava espaços vazios. Como um polvo de mil braços, escrevia muitas histórias. O casarão da Rua 1 de Março tem sua fachada simples. Durante 93 anos minha tia cuidou de deixá-lo vivo. Coleções de livros, obras de arte, manuscritos inéditos. Guardava em cada cômodo os textos vivos de uma vida intensa e bem experimentada. Os móveis modernos misturavam-se aos adereços antigos. Objetos de viagem disputando lugar com outras quinquilharias da cidade. Caixinhas, caixonas, baús, discos, estatuetas, vídeos, linhas, agulhas de tricô, miçangas, máscaras, lenços coloridos e outras tranqueiras. Nossa, passear entre seus guardados sempre foi aventurar-se num mundo quase mágico. Não havia de se imaginar a próxima descoberta. Não se sabia se o teto nos comprimiria ou se nos tornaríamos gigantes. Tia Carmelita sabia onde encontrar desejos e transformar minutos entediados. Cabeça ágil, dedos voláteis. A organização de tudo tinha lá uma lógica, digamos, da perspectiva de um pintor barroco. Ela sabia onde estava cada nuance, cada detalhe, onde estava o ponto de fuga. Talvez por instinto ou pela própria natureza tudo se encaixava em algum lugar. Para muitos era uma desordem pura e detalhes demais. Não para ela e seu casarão. Naquela tarde de domingo, quando soube da herança, meu coração bateu em disparada ao futuro. Como tomaria conta da vivacidade impressa naquele casarão continental? Lá estavam os seis quartos com banheiros, a sala de estar, a sala de jantar, a cozinha, a área de serviço e suas dependências. Num afã, de quem pega um novo brinquedo para montar, comecei trocar de lugar as coisas. Sempre imaginava o que faria se aquele lugar fosse meu. Era lúdico e desafiador. Quando a bagunça parecia geral, depois de muito mexer daqui e dali, refleti porque não deixava tudo como estava antes. Que necessidade era essa de mexer, de mudar tudo? A casa tinha o jeito de tia Carmelita e agora havia que ter o meu jeito... Estranho isso... Cada armário que abria, cada buraco de esquecimento que encontrava, me arremessava contra mim mesma. Apunhalava minha consciência. Expunha minha vaidade. Engrandecia meu poder. O legado era agora meu. Percebia que alguns apetrechos se ressentiam na mudança. Uns se quebraram. Eu estava exausta de olhar para o mundo que estava pela frente a arrumar. Aqueles objetos conviveram por anos junto aos seus pares. Numa ordem praticamente natural. Por hora, o destino deles pertencia a mim. Sentiriam a falta de tia Carmelita? Melhor não pensar nisso. Estavam em minhas mãos. Sentada em frente à grande arca, com olhos empoeirados e pensamento saudoso, entendi que precisava ir ao poucos. Por eles, por mim e por tia Carmelita. Saí do casarão e ele me acompanhou até o dia clarear.
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