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(Solange Pereira Pinto). Portanto, ao utilizar algum deles cite a fonte. Obrigada!

sábado, 5 de maio de 2012

Fresca



Por Solange Pereira Pinto
Madrugada em Brasília, 4 de maio de 2012.



A picada do grafite ainda comichava. Havia perdido a noção de quantas vezes a lapiseira lhe ferroara, enquanto os textos agonizavam a espera do ponto. Os poros acinzentavam aleatoriamente o dorso da mão direita. Ao lado, o cigarro cuspia brasa. As pernas se agarravam descompassadas. Tanto mais as ideias enrodilhavam, a pele enrijecia. O bote certeiro dos agulhões lhe assustava. O relógio confundia-lhe a cabeça. Sabia disso e ainda assim adiava jogar a primeira palavra na página em branco. Temia jorrar suas bobagens. Os dedos duvidavam e não deixavam uma sílaba sequer escapar. Espetava mais uma vez.O tempo ardia. A língua seca evaporava sua voz. Tomou um “engole” rápido da borracha e, antes de o medo gaguejar a coragem, escreveu firmemente: “Fresca”. Apertou duas vezes a cabeça roliça do cilindro prateado. O bastãozinho fino, mal saiu da lança pontiaguda, apontou em disparada: 


“O gosto de poço, fundo e espelhado, escorria pelas narinas. O barro molhado beijado de chuva tingia de laranja aquela tarde entediada. Seus pés pausavam a vontade de jogar o corpo no chão e lambuzar a pele de vulnerabilidade. Despida de si, faria sua modelagem de lama. Pensava. Voltou-se para o canto da mesa e argüiu a espera. A argila fria soprava as linhas da palma da mão esquerda, que auscultavam o bojo da moringa como se quisessem mapear o contorno de uma noite qualquer. Um assobio agudo de água penetrava, estreito, os poros terracota do pote. Alisou o tampo arredondado e num leve puxão dedilhou a fragilidade. Cheirou a infância e bebericou a memória. Sempre estivera ali, sobre a toalha crua de juta cobrindo o aparador, o cuidado da avó. As obrigações esquentavam o juízo, ela avisava. A textura porosa da saudade costurou de camponesa o avental do conto de fadas. Ao alinhavar a última frase, o cotovelo espatifou o gargalo. Em cacos, a moringa desfez o tempo”. 


A página molhada derreteu a lembrança e, entre sede e alívio, a menina releu “fresca”.

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