Encontrei
com você várias vezes. Na FLIP, no Sempre um Papo, em feiras literárias. Numa
dessas tiramos foto e, noutra, lhe entrevistei
rapidamente. Minha pergunta longa trouxe sua resposta exata e curta. Perguntei
o que você achava sobre a influência da internet na escrita, com tantas
abreviações, letras engolidas, emojis e outros símbolos. Você me olhou e disse:
o texto comunica? A função é comunicar! Sim, eu concordo. Ali você derrubou
tabus. Essa verdade, tão veríssima, é incontestável. Principalmente, vinda de
um escritor tão popular, com breves textos mensageiros certeiros de uma
infinidade de fatos diários, ordinários ou não.
Você ensinou muito
sobre liberdade, talvez por não ter a prisão dos dogmas universitários e das
“veritas” docentes e teóricas. Você próprio era o superlativo de “verus”
(verdadeiro), Verissimus, com a naturalidade e a espontaneidade de ser livre.
Ensinou que fazia crônica porque podia escrever o que quisesse e chamar de
crônica. Um pequeno conto, um artigo, um comentário político ou futebolístico.
Tudo crônica. É vero! A crônica é tão livre quanto você.
Você, que nunca foi
organizado na sua rotina, não tinha hora ou ritual para escrever. Apenas o
tempo. E, mais do que tudo, a sua capacidade silenciosa de observar e traduzir
em palavras seu pensamento. Você captava o humano no dia a dia, sem rotina. Não
se guiava pelos cânones: não leu muito Machado de Assis, nem mergulhou nos
clássicos. Gostava mesmo era dos cronistas brasileiros. Gostava
do Borges e do García Márquez. Nas salas de aula, quando eu lecionava Leitura e
Produção de Textos para os alunos de jornalismo, durante anos usei muitos
recortes de jornais, juntados por minha mãe, com suas breves crônicas
ilustradas por uma caricatura do seu rosto feita com nanquim. Ah, você gostava
de quadrinhos e começou a desenhar As Cobras, com linguagem
subliminar durante a ditadura; às vezes duvidava se os
leitores entendiam.
Você não fez faculdade, tampouco mestrado ou doutorado; não seguiu as exigências formais da sociedade — e, ainda assim, ensinou tanto e foi premiado na arte da escrita, que somente aos 30 anos entendeu ser uma vocação. Antes, experimentou ser músico e comerciante. O seu encantamento pelo jazz — esse gênero também tão livre, que integra improvisos, espontaneidade e momento —, junto do seu saxofone, virou hobby. Sua vida sempre ditada por independência. Certo dia disse que hoje teria escolhido a música e se aprofundado mais nela do que na escrita. Deixaria o seu silêncio da fala e a cabeça criativa de pensamentos e observações calar o verbo?
Sua
preferência por escrever a falar. Seu jeito lacônico. Seu hábito de dormir
tarde. As pausas. Começar a trabalhar após
a sesta do almoço. Sua parada para ver jornal à noite. Ah, essa autonomia de
lidar com o tempo — esse mesmo tempo que nos controla, como
você dizia. Sua introversão não lhe impedia de ser gentil
quando entrevistado ou solicitado para uma fotografia. Ali estava você
disponível. Sempre. Ainda que desconfortável. Sua escrita foi interrompida por
um grave AVC em 2021, em plena pandemia. Sua comunicação com o mundo foi
afetada. Seu último texto ficou
inacabado. As palavras se
calaram. O saxofone emudeceu. Depois, veio também o Parkinson.
Você,
ateu, com pai agnóstico e mãe católica, esteve próximo da morte algumas vezes,
e isso não foi uma questão, nem lhe trouxe visões ou sabedorias para além
daquelas que você já guardava: pensar sobre as coisas, refletir. Novamente,
gostava mais de escrever do que falar.
Você, que um dia quis
ser aviador, sobrevoava tão bem o cotidiano aterrissando pontualmente - por décadas - verdades sobre o Brasil em suas colunas de jornais. E, por algum tempo, fixou-se na ideia de ser
arquiteto, contudo você era mesmo um artista. Sem régua, sem compasso, sem formalidades. A música lhe dava mais prazer
do que escrever. Você dizia brincar de ser saxofonista. Infelizmente, a
sobrevivência financeira não admite certos prazeres. Brincar e se divertir no
ofício parecem afrontas.
Ah, por fim, queria que
soubesse que, se eu tivesse um filho, gostaria que ele se chamasse Luís
Fernando. Estou aqui escrevendo esta carta-crônica, pois hoje você nos deixou.
Obrigada por ter existido exatamente do seu jeito peculiar e ter sido famoso
dentro da informalidade que você acreditava e propagava. A vida é uma grande
piada — e, como você bem sabia, muitas vezes de mau gosto.
***
O gigolô das palavras
Por Luís Fernando Veríssimo
Quatro
ou cinco grupos diferentes de alunos do Farroupilha estiveram lá em casa numa
mesma missão, designada por seu professor de Português: saber se
eu considerava o estudo da Gramática indispensável para aprender e usar a nossa
ou qualquer outra língua. Cada grupo portava um gravador cassete, certamente o
instrumento vital da pedagogia moderna, e andava arrecadando opiniões.
Suspeitei de saída que o tal professor lia esta coluna, se descabelava
diariamente com suas afrontas às leis da língua, e aproveitava aquela
oportunidade para me desmascarar. Já estava até preparando, às pressas, minha
defesa (“Culpa da revisão! Culpa da revisão!”). Mas os alunos desfizeram
o equívoco antes que ele se criasse. Eles mesmos tinham escolhido os nomes a
serem entrevistados. Vocês têm certeza que não pegaram o Veríssimo errado? Não.
Então vamos em frente.
Respondi que a linguagem,
qualquer linguagem, é um meio de comunicação e que deve ser julgada
exclusivamente como tal.
Respeitadas algumas regras básicas da Gramática, para evitar os vexames mais
gritantes, as outras são dispensáveis. A sintaxe é uma questão de uso, não
de princípios. Escrever bem é escrever
claro, não necessariamente certo. Por exemplo: dizer “escrever claro” não é
certo, mas é claro, certo? O importante é
comunicar. (E quando possível surpreender, iluminar, divertir, comover...
Mas aí entramos na área do talento, que também não tem nada a ver com
Gramática.) A Gramática é o esqueleto da língua. Só predomina nas línguas
mortas, e aí é de interesse restrito a necrólogos e professores de Latim, gente
em geral pouco comunicativa. Aquela gravidade sombria que a gente nota nas
fotografias em grupo dos membros da Academia Brasileira de Letras é de
reprovação total pelo Português ainda estar vivo. Eles só estão esperando,
fardados, que o Português morra para poderem carregar o caixão e
escrever sua autópsia definitiva. É o esqueleto que nos traz de pé, certo, mas
ele sozinho não informa nada, como a Gramática é a estrutura da língua, mas
sozinha não diz nada, não tem futuro. As múmias conversam entre si em Gramática
pura.
Claro que eu não disse tudo isso para meus entrevistadores. E adverti que minha implicância com a Gramática na certa se devia à minha pouca intimidade com ela. Sempre fui péssimo em Português. Mas — isto eu disse — vejam vocês, a intimidade com a Gramática é tão dispensável que eu ganho a vida escrevendo, apesar da minha total inocência na matéria. Sou um gigolô das palavras. Vivo à custa delas. E tenho com elas a exemplar conduta de um cáften profissional. Abuso delas. Só uso as que eu conheço, as desconhecidas são perigosas e potencialmente traiçoeiras. Exijo submissão. Não raro, peço delas flexões inomináveis para satisfazer um gosto passageiro. Maltrato-as, sem dúvida. E jamais me deixo dominar por elas. Se bem que não tenha também o mínimo escrúpulo de roubá-las de outro, quando acho que vou ganhar com isto. As palavras, afinal, vivem na boca do povo. São faladíssimas. Algumas são de baixíssimo calão. Não merecem o mínimo respeito.
Um escritor que passasse a respeitar a
intimidade gramatical das suas palavras seria tão ineficiente quanto um gigolô
que se apaixonasse pelo seu plantel. Acabaria tratando-as com a deferência de
um namorado ou com a tediosa formalidade de um marido. A palavra seria sua
patroa! Com que cuidados, com que temores e obséquios ele consentiria em sair
com elas em público, alvo da impiedosa atenção de lexicógrafos, etimologistas e
colegas. Acabaria impotente, incapaz de uma conjunção. A Gramática precisa
apanhar todos os dias para saber quem é que manda.











